quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

POSTAL DE BOAS FESTAS

Faz 25 anos que me iniciei na aventura da atividade autárquica. Não foi um risco calculado, foi a disponibilidade para um serviço público na minha cidade. Agora do que estava longe de imaginar era a marca de água com que se fica depois de ser autarca. A partir daí é-se olhado de maneira diferente e também se passa a olhar com outros olhos para as ruas, para as casas e até para as árvores. Nunca mais há um café distraído, tudo nos salta à vista de uma nova forma impressiva e com uma outra luz e textura. Não será bem um stress pós-autarca de que se fica a sofrer mas é uma vida diferente que se fica a viver.
 
A memória, então, fica povoada de tanta coisa que é difícil não tropeçar permanentemente em “pedras” e/ou “estórias” de encanto vário. Até palavras por lá ouvidas ou lidas e que não assim tão frequentes nos vêm visitar com frequência. Uma das que tantas vezes me aparece é embelezamento. Está no título de uma proposta de intervenção urbanística, do arquiteto Etienne de Grörer, feita em meados do século passado, concretamente: “Ante-pojecto de urbanização, de embelezamento e de extensão da cidade de Coimbra”. Ora aí está embelezamento! Palavra que não está na moda, que não faz parte do atual jargão técnico mas que encerra uma ideia que me parece preciosa e profundamente adequada às necessidades da cidade.

Quem ama Coimbra e em especial quem nela vive e/ou trabalha descreve, vezes sem conta, o seu fantástico skyline e fala do seu ambiente único mas não deixa de se sentir incomodado quando percorre os seus espaços públicos (as suas praças, ruas e recantos). Numa análise mais fina e atenta sente-se o desconforto pela ausência de soluções coerentes e integradas de embelezamento.

Sei quão difícil é o governo da cidade, como é complexo o seu tecido social e como são vastas as “capelanias” historicamente instaladas e, mais ainda, como é por aqui tão praticado o pecado da omissão, por isso mesmo é que me parece ser este o momento – dado o apelo à paz e amor do Natal e a esperança de um bom Ano Novo que se deseja – para falar da necessidade de embelezamento de Coimbra.

Façamos uma pequena peregrinação pelas entradas da cidade, pela Baixa, pela envolvente dos Polos Universitários e dos estabelecimentos de saúde, pelos diversos “bairros” e jardins e depois capacitemos de que isto assim não é vida. Há demasiada falta de beleza, de ordenamento e de coerência urbana.

Deixo, por isso, neste “postal” de Boas Festas, um apelo a um olhar e a um empenhamento coletivo de corresponsabilização e de exigência no sentido do embelezamento da nossa Coimbra, para que ela tenha um Novo Ano com renovada esperança no futuro.

(Artigo publicado na edição de 18/12/2014, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

UM GRANDE 31



No seu barómetro anual, acabado de publicar pela Transparência Internacional (www.transparency.org), sobre a perceção da corrupção no sector público, Portugal aparece no 31.º lugar, entre 175 país. Se é uma boa ou má classificação depende da perspetiva, mas que é um lugar simbólico lá isso é, porque a corrupção é sem dúvida um grande 31. Claro que, para uma correta compreensão deste ranking, é importante conhecer as metodologias utlizadas e não ficar pela enunciação genérica que é excelente para título de jornal mas de difícil entendimento quando, neste país das cunhas e de brandos costumes, se fala permanentemente e em alta voz da corrupção. 
 
Por mim, devo confessar mais uma vez, que sou um homem de sorte porque lendo e ouvindo tantas e tão variadas acusações de corrupção quando distraidamente no espaço público - seja no autocarro, no comboio ou no café – oiço as conversas dos meus vizinhos ocasionais nunca, mas nunca, os ouvi confessarem qualquer ato menos correto, o que me leva a concluir pela minha boa sorte dado que os malandros e os corruptos viajarão noutro autocarro, noutra carruagem ou estarão a saborear a sua bica, que irá ser paga com o ignominioso dinheiro obtido de forma nada transparente, noutro café ou noutra esplanada.

Por outro lado confronto-me frequentemente com o azar de ver, no momento seguinte, acusadores e mesmo “juízes” cuja opinião já transitou em julgado, sobre terceiros a quem acusam de corruptos impenitentes, a desbarretarem-se e a defenderem os réus que tinham condenado, quando se cruzam com eles ou obtém aquele pequeno favor que tão criticável era quando concedido a outro.

A questão da corrupção é sem dúvida complexa e o mais chocante é o envenamento dos espíritos feito pelos verdadeiros corruptos que através da generalização, se banqueteiam tranquilamente, em benefício próprio, com informações privilegiadas, subornos, etc., prejudicando aqueles que enchem a boca com a corrupção mas que são incapazes de a identificar e denunciar devidamente. Compare-se o mundo das acusações diárias de corrupção e as condenações judiciais que são tão raras que até duvidamos das estatísticas, parecendo que os números conhecidos até foram corrompidos. 

O “jogo da corrupção” é, sem dúvida, um jogo difícil, hoje mais do que nunca, muito por força de uma cultura da imagem em detrimento da substância, do respeitinho pelo senhor da bela gravata ou carro de topo de gama, da ausência de sansão social efetiva perante a cunha e o amigável desenrascanço, tudo isto adubado por imprensa tabloide e uma utilização perversa das redes sociais.

Pois é, temos aqui um grande 31 que mais do que combatermos andamos a maquilhar com pseudo propostas e tonitruantes declarações de intenção. É que no nosso “paraíso perdido” houve sempre uma cadeira, em lugar de destaque, para a Dona corrupção. 

(Artigo publicado na edição do Diário de Coimbra de 4.12.2014)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

OS REIS MAGOS E OS VISTO GOLD

Por esta altura, na minha meninice aldeã, num tempo em que os animais já não falavam e o Dr. Marques Mendes ainda não exercia a sua reputada atividade de neonatologista empresarial, começava a preocupação de ir apanhar o musgo para o presépio e a ansiedade de receber das mãos da minha mãe as figurinhas de barro que ela guardava religiosamente de ano para ano. Por vezes, se conseguia juntar mais uns tostões, até me dava uma nova ovelha para acrescentar ao rebanho, mas no essencial entregava-me a preciosidade composta pela Sagrada Família, uma vaca, um burro, um pastor e duas ou três ovelhas e, ainda, para meu deslumbramento: os reis magos. 
 
A cenografia ficava à minha conta bem como o cuidado de ir fazendo avançar os ditos reis, que vinham do oriente, com informação privilegiada que tinha escapado ao terrível Herodes, um regulador da época a quem apesar de todo o poder escapava informação relevante, tal como hoje, diria sem medo de errar: diariamente, para desgraça de uns e alegria de outros. 

Confesso que nessa altura – peço que me desculpem porque era uma criança de tenra idade – não sabia não só da necessidade de os magos terem passaporte nem tão pouco que as riquezas de que eram portadores lhes poderiam dar direito a um visto gold e, consequentemente, a uma viagem e residência segura sem temerem o assanhado Herodes. 

Hoje, passados tantos anos, penso como teria sido diferente a problemática viagem dos reis magos, graças à enorme bondade da criação e empenho do Dr. Paulo Portas, um verdadeiro democrata-cristão, nos visto gold, para quem de acordo com a sua professada doutrina o dinheiro está acima de quaisquer outros valores e essa coisa de ser mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um detentor de visto gold entrar no reino de Deus é conversa de criança. 

Claro que, contrariamente aos reis, José, um carpinteiro, Maria, uma doméstica e Jesus um nascituro, há luz da grelha de avaliação de um qualquer SEF, e não tendo capacidade de influência política ou de acesso a altos quadros da administração pública seriam remetidos à sua origem independentemente da política materno-infantil de Herodes.

(Artigo publicado na edição de 20 de Novembro, do Diário de Coimbra)


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

UM GOVERNO DE SORVAS




Pelo São Simão, que se celebra nos finais de Outubro, têm lugar as ditas feiras dos passados. São feiras tradicionais em que predominam os frutos secos e não quaisquer outros produtos, que alguma mente mais perversa possa estar a imaginar e que de resto não honrariam o apóstolo Simão, o Zelota. 

Nessas feiras, de que tenho memória desde a minha infância, é habitual aparecerem à venda sorvas, fruto que pela surpresa dos meus amigos quando lhes faço referência me leva a concluir é pouco conhecido. Aliás, nem o termo sorvado, ponto em que devem estar as sorvas para serem comidas (veja-se a coincidência), não é muito da conversa comum. 

As sorvas também são conhecidas por nêspera alemã – a planta que dá as sorvas é da família das rosaceae  e de nome mespilus germânica o que explica a designação -, e a que os franceses, numa terminologia popular que tem a ver com a sua imagem e que me abstenho de traduzir, chamam “cul de chien”.

Aconteceu-me este São Simão, numa feira dos passados, e depois de uma conversa com uma vendedeira, que me explicou a técnica adequada ao amadurecimento das sorvas, ser atingido, repentinamente, ia a dizer como Saulo de Tarso, pela imagem de que aquele cesto de sorvas, que estava á minha frente, representava uma reunião de conselho de ministros do atual governo. Era uma verdadeira metáfora frutícola, se é que isto existe, do governo, que ali estava exposta ao olhar dos passantes. 

Contive-me no anúncio desta visão, até porque não quero ofender as sorvas, nem desmotivar o seu consumo, mas um fruto que tem reminiscências alemãs e que só é bom quando está podre (bem sorvado), não há dúvida que tem tudo para ser o ex-libris de um governo de obediência germânica, em decomposição. 

Ali estavam, amontoados, numa cesta artesanal, o Passos, o Portas, ministros e secretários de estado, bem sorvadinhos, à espera de serem comidos numa feira popular.

Rezo para que as sorvas perdoem este atrevimento de tão mal as comparar e que São Simão não vire as costas às minhas e vossas aflições, bem pelo contrário, que resgate a imagem das sorvas, as deixe para exclusivo prazer do nosso palato, e que para o ano este governo de sorvas seja apenas uma má memória de tempos passados.

(Artigo publicado na edição de 6 de novembro de 2014, do Diário de Coimbra)